que há em mim uma dose
grande de insatisfação; não,
diminuir essa medida seria
tolerar o ronco de um vizinho:
disfarçar o indisfarçável,
aumentando o volume do ventilador.
Não posso berrar
pela janela: cala a boca!
A frieza dos seus beijos é chocante.
Não, não posso olhar-me no espelho,
buscando em mim esses motivos
que lhe fazem tão prático
no amor comigo.
Preciso não temer negar
o pouco que você me dá:
é impossível matar a fome
com esse biscoito da sorte chinês,
esse que você sorteia e diz:
"O homem é aquele que sempre parte.
Aceite e brinque de o ter durante uma hora.
O homem não pertence, o homem é quem tem."
Meu estômago revira
aguardando a caça que você não traz.
Mastigo o maldito biscoito
que descreve a falência dos meus sentidos
da autocrítica e estima:
"A mulher deve calar. Aprender é abrir-se
quando tocada. Amarrar os pés é sua obrigação
de amante. Fechar a boca é guardar."
Mas, agora, quando desconfio
que as horas me tornam, de novo, uma insone,
reconheço um desejo claro - ou será a manhã
que desponta? - de mudança:
preciso assumir que há em mim
uma louca de pedra que vai, sim,
abrir a janela e berrar para
esse vizinho que deixa o
seu sono me causar inveja.
O homem não pertence.
E a mulher é casada com a espera.
Ela vive ao lado do telefone.
Ela não é. Ela não tem.
Ela precisa desse beijo mecânico,
dessas declarações de um amor estagnado
de motel ruim.
Não, não posso disfarçar o barulho
que os lixeiros fazem, cantando
a linda música que chora:
"eu amo! eu amo! eu o amo em cada
camada do tempo. O meu amor preenche
o vazio entre todos os átomos.
Meu amor é a liga que funde a matéria.
Que faz a cadeira e a mesa. Meu amor
não quer nada..."
O barulho da frieza e do ronco
e do triturador de lixo não se engana,
como a minha alma. Seus desejos
não te enganam e nem a mim.
Preciso tirar a temperatura
da minha sanidade e reconhecer que não
posso amar quem não me quer tanto,
nem tampouco, contanto que eu o meta
entre as minhas pernas e,
com essa carência que rege e nivela
por baixo, me faça gozar. Te faça gozar.
E então grata,
como o termostato apontando o mínimo,
mas fervendo toda, ainda digo,
louca, louca de pedra:
obrigada! Sou sua. Te amo.
Te espero amanhã - que nunca é o dia seguinte -
porque sou mulher.
Mulher que pertence e somente assim
acredita ser.
Não, não posso mais. Estou coberta de fome.
Fernanda Young
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